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Estórias do Carnaval  

 

Não há quem não tenha guardado, para toda a vida, memórias do carnaval ou do entrudo.

Da infância, recordo os marcarados que entravam em casa de minha avó, por ocasião da matança do porco.

As noites eram negras, o inverno rigoroso e os candeeiros da iluminação pública, lanternas que ofuscavam os transeuntes.

Quando os mascarados entravam em casa, escondia-me nas mantas da minha avó, ou corria para a cozinha. Lá as mulheres enchiam morcelas e cuidavam do lume onde grandes caldeirões, destilavam torresmos de toucinho em banha, que dava para o ano inteiro.

Ninguém entendia os medos da minha infância, alimentados pelos temores da escuridão, das almas do outro mundo e de carrancas horríveis que, nesses dias, vagueavam pelas ruas. Nem mesmo quando os mascarados retiravam os seus disfarces, os olhava à vontade, como pessoas amigas e conhecidas. Tinha deles um pavor imenso e de tudo o que lhes dissesse respeito.

Até as danças de espada que garbosamente se exibiam no Largo da Vila, me causavam receios. Aquelas espadas em riste, circulando entre os dançarinos, lembravam-me batalhas de reis lusitanos travadas contra a mourama. Nunca apreciei estórias e dramalhões de faca e alguidar que as danças iam contando, de terra em terra, num teatro popular autêntico que, segundo sei, só continua na Ilha Terceira.

Mais divertidos eram os bailes nas sociedades, acompanhados de conjuntos musicais organizados para o efeito. Gente de toda a ilha, ia, às Lajes, dançar e confraternizar. A folia prolongava-se até ao romper da aurora, desde que o motor da central elétrica suportasse o esforço.

Os mais pequenos, vestidos pela costureira de casa, em moldes retirados de revistas, exibiam-se nas matinés das tardes de carnaval. Brincavam com  confetis e serpentinas, e as correrias e canseiras acabavam, habitualmente,  aos colos das mães, em sono reconfortante.

Nos anos do Seminário, o Entrudo (do latim introitus, entrada, ou período de três dias que precede a Quaresma), eram dias de retiro, na senda dos rigorosos exercícios espirituais instituídos por Santo Inácio de Loiola, fundador dos Jesuítas. Era o contraponto religioso às manifestações e alegrias mundanas diabolizadas por uma preconceituosa moral que em tudo via a influência do diabo.

Dentro dos muros reinavam o silêncio e a compunção, numa lógica maniqueista. Na cidade, a diversão: danças e bailes, desfiles de estudantes e touradas de praça que anivamam, intensamente, jovens e adultos. Dois mundos de costas voltadas, desentendidos por preconceitos, tarde ou nunca ultrapassados.

São muitas as manifestações populares desta quadra. Algumas mantêm-se inalteradas, graças à persistência dos mais idosos.

Recordo um grupo de idosos da Ajuda da Bretanha que, nesta altura, evocava as suas memórias de infância, caracterizando-se com trajes antigos, cheirando a naftalina. Havia fatos e vestidos domingueiros, chapéus de cerimónia, e também roupas de trabalho de camponês e de dona de casa, corroídas pelos anos e cosidas vezes sem conta porque pano, não havia, e o dinheiro também não chegava, nem sequer para comer.

Tudo servia para recordar os viveres de outrora, tantos penares e  labutas. No fim, o comentário: « os tempos agora são muito diferentes! São melhores, nem se compara!... »

Doutras épocas, chegaram-nos também as malassadas de São Miguel, os coscorões e as filhós das outras ilhas, servidos com licores, aguardentes e outras bebidas tradicionais, com que se brindava mascarados e convivas.
Brindemos à alegria do Carnaval, pois tristezas não pagam dívidas!

 

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